HOJE - Literatura e Alimentação
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Em A Cidade e as Serras de Eça de Queirós, onde
encontramos aquele que é talvez o mais célebre texto da nossa literatura
respeitante à alimentação, e, em especial, à valorização de usos e
produtos regionais. Jacinto, o português convertido à civilização parisiense,
e que já não a pode dispensar, viaja para Portugal a contragosto para uma
vilegiatura na sua quinta de Tormes, cujo desconforto receia, e, no termo
de acidentada viagem, derreado e esfomeado, depara com o seguinte jantar:
Uma formidável moça, de enormes peitos que
lhe tremiam dentro das ramagens do lenço cruzado, ainda suada e esbraseada
do calor da lareira, entrou esmagando o soalho, com uma terrina a fumegar.
E o Melchior, que seguia erguendo a infusa do vinho, esperava que suas
Incelências lhe perdoassem porque faltara tempo para o caldinho apurar...
Jacinto ocupou a sede ancestral – e, durante momentos (de esgazeada
ansiedade para o caseiro excelente), esfregou energicamente, com a ponta da
toalha, o garfo negro, a fusca colher de estanho. Depois, desconfiado, provou o
caldo, que era de galinha e rescendia. Provou – e levantou para
mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam, surpreendidos.
Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, com
espanto:
– Está bom!
Estava precioso: tinha fígado e tinha
moela; o seu perfume enternecia; três vezes, fervorosamente, ataquei
aquele caldo.
– Também lá volto! – exclamava
Jacinto com uma convicção imensa. – É que estou que estou com uma
fome... Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome.
Foi ele que rapou avaramente a sopeira. E
já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija moça de
peitos trementes, que enfi surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado – e
pousou sobre a mesa uma travessa a trasbordar de arroz com favas. Que
desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominara favas!... Tentou todavia
uma garfada tímida – e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo
enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com
uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado:
– Deste arroz com fava nem em Paris,
Melchior amigo!
O homem óptimo sorria, inteiramente
desanuaviado.
– Pois é cá a comidinha dos moços da
quinta! E cada pratada, que até suas Incelências se riam... Mas agora, aqui, o
Sr. D. Jacinto, também vai engordar e enrijar!
O bom caseiro sinceramente cria que,
perdido nesses remotos Parises, o Senhor de Tormes, longe da fartura de
Tormes, padecia fome e mingava... E o meu Príncipe, na verdade,
parecia saciar uma velhíssima fome e uma longa saudade da abundância,
rompendo assim, a cada travessa, em louvores mais copiosos. Diante do
louro frango assado no espeto e da salada que ele apetecera na
horta, agora temperado com um azeite da serra digno dos lábios de Platão,
terminou por bradar:
– É divino!
Mas nada o entusiasmava como o vinho de
Tormes, caindo de alto, da bojuda infusa verde – um vinho fresco, esperto,
seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou
livro santo. Mirando, à vela de sebo, o copo grosso que ele orlava
de leve espuma rósea, o meu Príncipe, com um resplendor de optimismo na
face, citou Vergílio:
– Quo te carmina dicam, Rethica? Quem
dignamente te cantará, vinho amável destas serras? Eu, que não gosto que
me avantagem em saber clássico, espanejei logo também o meu Vergílio, louvando
as doçuras da vida rural:
– Hanc olim veteres vitam coluere Sabini... Assim viveram os velhos Sabinos.
Assim Rómulo e Remo... Assim cresceu a valente Etrúria. Assim Roma se tornou a
maravilha do mundo!
E imóvel, com a mão agarrada à infusa, o
Melchior arregalava para nós os olhos em infiito assombro e
religiosa reverência (EÇA DE QUEIRÓS).