Ano Letivo
Alexandre
Homem Cristo escreveu este texto sobre o início das aulas. Escreve no Observador. Foi
conselheiro do Conselho Nacional de Educação e desempenhou funções de assessor
parlamentar no âmbito da Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura.
O ano lectivo 2018/2019 arranca no contexto em que arrancam
todos os anos lectivos: várias alterações legislativas que dificultam a
preparação das escolas, demoras na contratação de professores para suprir
necessidades, insatisfação dos docentes cuja vida é andar de mala às costas, e
preocupação dos pais quanto às falhas do Estado (seja em garantir um arranque
atempado das aulas ou o acesso a manuais escolares gratuitos). E, como também
não é raro, este ano juntam-se as ameaças dos líderes sindicais representantes
dos professores, que continuam em braço-de-ferro negocial com o governo
reclamando a contagem do tempo de serviço congelado – um confronto que marcará
o período prévio à discussão do Orçamento de Estado para 2019.
Existem vários ângulos a partir dos quais se pode olhar para
esta realidade de rotina de desassossegos à volta dos inícios dos anos
escolares. O mais interessante, parece-me, reside na constatação de que esta
nossa normalidade de percalços destoa da realidade da maioria dos países
europeus – onde, apesar de pontuais ajustes, as primeiras semanas de aulas são
mais focadas nos alunos e menos nas insuficiências organizacionais do sistema
educativo. O que explica essa diferença? As comparações internacionais sugerem
que o ponto se coloque no grau de (des)centralização do sistema educativo –
quanto mais decisões estiverem dependentes do Ministério da Educação, maior a
probabilidade de falhas, atrasos e bloqueios administrativos. Olhando ao caso
português, o diagnóstico encaixa: na União Europeia, Portugal está entre os
países em que, na educação, mais decisões são tomadas pelo ministério e menos
decisões (curriculares, pedagógicas, de gestão financeira e de gestão de
recursos humanos) são confiadas às escolas. Há, obviamente, inúmeros desafios
no desenvolvimento do sistema educativo (diversificação da oferta, combate ao
abandono escolar, garantia de qualidade e prestação de contas, melhor acção
social escolar). Mas, do ponto de vista organizacional, esta centralização é
ainda a sua principal fraqueza.
À entrada do último ano lectivo do seu mandato, essa
fraqueza está no centro da avaliação do governo na Educação. É que, por um
lado, o governo adoptou (e bem) um discurso de promoção da inovação em
sala-de-aula e de reforço de competências dos alunos, definindo a autonomia
pedagógica como uma prioridade das suas políticas públicas. O emblemático
projecto da Flexibilidade Curricular é disso o maior exemplo, apesar das suas
insuficiências, estimulando as escolas a tomar decisões sobre o currículo e os
professores a cooperar e introduzir nas suas abordagens pedagógicas. Só que,
por outro lado, a concretização desse projecto nas escolas públicas não encaixa
devidamente com a sua realidade diária: não podem as escolas exercer a sua
autonomia pedagógica e definir o seu projecto educativo à medida dos seus
alunos quando estão estranguladas financeiramente, quando não têm poder de
decisão na selecção dos seus professores ou quando o ensino secundário
permanece inteiramente condicionado pela realização dos exames nacionais no
âmbito do acesso ao ensino superior.
u seja, se por um lado se reconhece uma vitória no reforço
da autonomia pedagógica nos últimos anos, há igualmente que reconhecer as
várias derrotas silenciosas que implicam os choques desta autonomia com a
realidade centralizada e estreita do sistema educativo – e que o governo não
procurou contrariar. Seja por que motivo for, o governo confiou que bastaria
atribuir no papel maior autonomia pedagógica para as escolas conseguirem
exercer essa liberdade no terreno. Mas iludiu-se: as escolas (sobretudo as
secundárias) não conseguem. E não conseguem porque o sistema gera incentivos
contrários à inovação e porque, nas dimensões de gestão e de estratégia, as
escolas continuam sem poder de decisão.
Dir-me-ão que muito disso é circunstancial. Que, olhando
para a frente, por exemplo, o orçamento da educação em 2019 poderá surgir
reforçado, desapertando o garrote financeiro das escolas. Ou que, noutro
exemplo, a estabilização do corpo docente numa escola, por via da vinculação de
quadros, pode vir a ser mais determinante do que atribuir a selecção dos
docentes aos directores. Mas mesmo aceitando esses argumentos, os factos são os
factos: as escolas continuem sem participar em decisões fundamentais da sua
gestão e, tudo indica, um dos maiores entraves sistémicos à autonomia
pedagógica nas escolas acabará o mandato deste governo tão firme quanto começou
– o afunilamento do ensino secundário, em virtude do acesso centralizado ao
ensino superior.
Este último problema explica-se com facilidade. Assim que
colocam o pé no ensino secundário, os alunos só perguntam pelo que sai no
exame, os pais só se preocupam com o que sai no exame e os professores só
ensinam o que sai no exame. É esse o incentivo que o sistema impõe a alunos e
professores: na medida em que o exame é decisivo para o acesso ao ensino
superior (e a nota do exame pode significar conseguir-se, ou não, vaga no curso
desejado), é compreensível que todos aí foquem as suas energias.
Consequentemente, a actividade lectiva e as abordagens pedagógicas ficam
submetidas, não à matéria a leccionar, mas às características do exame – o tipo
de conhecimento que é avaliado, o tipo de questões que são colocadas, a matéria
mais provável de surgir. Dito de outra forma: pelo risco que representam no treino
para o exame, isto implica assumir que ficam de fora as competências para o
século XXI, as novas abordagens pedagógicas e as inovações em sala-de-aula –
isto é, muito daquilo que o ministério da educação considera fundamental para a
adequada preparação dos jovens alunos até à conclusão da escolaridade
obrigatória. Sublinhe-se bem o ponto: o problema não é a existência de exames
nacionais (que servem para certificar a conclusão do ensino secundário), o
problema é a relação directa que os exames mantêm com o acesso ao ensino
superior, tornando-os de alto risco para os alunos e foco único do ensino
secundário.
Ora, é aí que estávamos em 2015 e é aí que ainda estamos. A
questão que agora se coloca, à entrada do último ano de mandato da actual
equipa governativa, é se será aí que estaremos nos próximos anos. Dito de outro
modo, a questão é se, nos meses vindouros, a tutela aproveitará a oportunidade
para, primeiro, aprofundar a autonomia das escolas em áreas de gestão
financeira e de recursos humanos, e, segundo, anunciar a reflexão do governo
quanto ao acesso ao ensino superior (até porque houve esse compromisso aquando
da nomeação pelo ministro Manuel Heitor de um grupo de trabalho nomeado sobre o
tema). Está na hora de abrir a discussão, comprometer os partidos com posições
e desenhar caminhos futuros que tornem sustentável a autonomia pedagógica nas
escolas públicas.
Falar de autonomia é falar de uma parte do balanço da
actuação do governo. Sim, este governo tomou várias decisões erradas na
educação nos últimos três anos – algumas das quais particularmente graves e com
consequências estruturais, como foi o estrangulamento súbito dos contratos de
associação e ainda a destruição do modelo de avaliação externa dos alunos, que
compromete a comparabilidade dos resultados e interrompe as bases de dados
construídas desde 2000 para monitorização do sistema. Mas, note-se, também
tomou decisões correctas, como foi o caso da aposta estratégica numa maior
autonomia pedagógica nas escolas, condição fundamental para a modernização do
sistema educativo português. A urgência é que a parte positiva do seu legado
não sobreviverá por si só num sistema que não foi pensado e não está preparado
para a autonomia das escolas. Sem aprofundamento da autonomia na gestão das
escolas e sem libertar o ensino secundário das amarras do acesso ao ensino
superior, a experiência da autonomia pedagógica será um fracasso. Evitá-lo é,
portanto, a principal missão da tutela neste seu último ano.
in Ponto SJ