Educar para um novo paradigma
Diante de um futuro incerto, o novo ano, que agora começa, poderá ser um desafio para uma nova forma de educar, para dar sentido à vida. Sara Rodi, escritora, licenciada em Ciências da Comunicação, uma das fundadoras do Movimento Cívico Por Uma Escola Diferente, escreveu sobre o que significa Educar para um novo paradigma:
"Mudam-se os tempos,
mudam-se as vontades, escreveu Camões, há quase cinco séculos. Desconhecendo
como as questões da Vontade (do Instinto à Motivação) viriam a ser tão
estudadas por diversas áreas que surgiram entretanto, procurando tratar de
forma científica aquilo que a poesia há tanto traduzia em palavras. Não sou
psicóloga, neurocientista ou cientista social – estarei sempre mais do lado da
poesia – mas sou mãe por vontade e com vontade de entender o que move os meus
filhos, num tempo em que tanto daquilo que, durante tantos anos moveu tantas
gerações, deixou de ter razão de ser.
Braham Maslow criou nos anos
50 uma Pirâmide de Necessidades segundo a qual se movia a ação humana. O
primeiro nível de motivação, na base da pirâmide, seria o das necessidades
fisiológicas: comida, água, ar respirável… Satisfeitas essas necessidades,
surgiria um outro nível de motivação mais ligado à estabilidade e segurança,
outro ligado aos relacionamentos – amizade, amor, família – e depois disso as
questões do desempenho – sentirmos que estamos a dar o nosso melhor e que os
outros o reconhecem. Por último, no topo da pirâmide, surge a auto-realização,
que tem a ver com aquilo que somos, verdadeiramente, e temos para dar. A teoria
não é consensual, mas olhando para a História do país, ou mesmo para a História
da Humanidade – e aconselho, nessa linha, os livros do professor Yuval Noah
Harari, “Homo Sapiens” e “Homo Deus” – verificamos como as grandes preocupações
dos nossos antepassados foram, em primeiro lugar, de ordem fisiológica, e depois
ligadas à estabilidade e segurança, garantindo a sobrevivência dos próprios e
da comunidade. Nas zonas onde foram ultrapassadas essas necessidades,
assistimos ao surgimento de gerações que se preocupavam sobretudo com as
questões do emprego e do reconhecimento dos pares, ligadas também à melhoria
das condições de vida. Foi a geração de muitos dos nossos avós ou pais, que
influenciou a minha. Entrar na faculdade, de preferência num curso com uma boa
saída profissional, e conseguir um bom emprego – que era sinónimo de
estabilidade, preferencialmente com o reconhecimento dos pares – era aquilo que
nos era incutido como passaporte para a felicidade.
A crise destruiu os sonhos
de muitos adultos, outros chegaram aos 40, 50, 60 anos exaustos, deprimidos ou
sem relacionamentos de qualidade. E o sacrifício pela estabilidade acabou por
ser posto em causa pelas novas gerações: Será que é isto o que eu quero para
mim? Nessa descrença germinou um vazio de sentido, que se torna num verdadeiro
buraco negro quando olhamos para a frente e não sabemos que espécie de futuro
será o da Humanidade… Sabemos que a inteligência artificial vai substituir
milhares, milhões de empregos por algoritmos e robots, e já se fala numa
possível classe inútil que ninguém sabe o que fará ou como se comportará. A
ideia de um Rendimento Básico Incondicional, garantido a todos os cidadãos, já
foi testado em países como a Finlândia ou a Holanda. As alterações climáticas
parecem irreversíveis e ninguém sabe que catástrofes nos esperam. Ao mesmo
tempo, há planos para voltarmos à Lua e, a partir dela, chegar mais facilmente
a Marte, para onde se desenham colónias e novas formas de organização
civilizacional. O que será o futuro? Estamos a educar os nossos filhos para
quê, exatamente? A pedir-lhes que se sacrifiquem, com que razão e em que
direção? E, no entanto, num mundo tão cheio de desafios, podemos vir a precisar
de uma geração capaz de se sacrificar, e muito, por escolhas sensatas e
mudanças urgentes… (a menos que queiramos correr o risco de ver a Humanidade
retroceder à luta pelas necessidades mais básicas, de sobrevivência).
Sou solidária com aqueles
que se queixam das gerações mais novas, que acusam de egocentrismo e de apenas
conseguirem sacrificar-se no ginásio ou à mesa, a comer coisas esquisitas para
conseguir uma melhor aparência para as fotos do Instagram. Ou que se sacrificam
nos bens que consomem, mas apenas para poderem aceder a outros. Sou solidária
porque também não creio que seja este tipo de sacrifícios aquele que torna as
pessoas felizes, pelo menos não de forma plena ou duradoura. São mais uma
espécie de paliativo para a ausência de sentido que se gerou, não a solução
para o problema que, a meu ver, está mais na resposta à pergunta: Com aquilo
que sou, o que tenho para dar? O que posso melhorar? Transformar? Criar?
Revolucionar? Para mim e para todos aqueles que me rodeiam?
A verdade é que não vamos
ajudar as novas gerações a encontrar respostas para estas perguntas – a buscar
um sentido para a sua vida – quando continuamos a exigir-lhes que tenham boas
notas para serem os melhores da turma ou irem para o quadro de honra, sem
sequer lhes explicarmos em que medida tudo aquilo que aprendem pode vir a
ser-lhes útil no futuro, seja ele qual for. A desejar que eles entrem num bom
curso que lhes garanta um bom emprego e o dinheiro suficiente para comprarem
uma casa, um carro e um telemóvel topo de gama, sem lhes explicarmos que o
sucesso profissional advém, sobretudo, do empenho que colocamos a fazer aquilo
de que gostamos, e que, se é verdade que os bens materiais podem tornar uma
vida mais confortável, não são sinónimo de auto-realização. Quando sonhamos
profissões para eles, mas não os ensinamos a conhecer os seus talentos, as suas
maiores forças e fragilidades, e não lhes damos autonomia para fazerem as suas
próprias escolhas, alicerçadas nos valores que lhes transmitimos. Quando,
tantas vezes, nem lhes transmitimos valores alguns, nós próprios enredados nos
nossos stresses laborais, na nossa forma física e nas nossas redes sociais.
Quando não somos, nós próprios, o melhor exemplo de auto-conhecimento, empatia,
entreajuda, entrega e espírito de sacrifício. Quando nós próprios também não
sabemos o que temos para dar e/ou não o colocamos ao serviço de um futuro
melhor…
O mundo está em mudança e,
com ele, um novo paradigma que é preciso desenhar. Para isso, as novas gerações
precisam de novas diretrizes, outros estímulos, mais coerência e mais verdade.
Precisam de uma outra Educação, na escola e em casa. Precisam de professores e
familiares que busquem, eles próprios, subir um degrau na sua pirâmide e
procurem a sua auto-realização, por si e para os outros. Sem sacrifícios vazios
de sentido. Numa frase de Charles Du Bois: “estar pronto para, a qualquer
momento, sacrificar o que somos pelo que poderíamos vir a ser.” Difícil? Claro
que sim… Mas o novo paradigma é exigente. Exige que cada um faça o seu trabalho
de casa interior, e depois arregace as mangas para o pôr ao serviço dos outros.
Quando isso for uma realidade, teremos finalmente novas gerações preparadas
para qualquer futuro, com mais ou menos robots, aqui ou em Marte. Melhor ainda,
novas gerações preparadas para construir qualquer futuro, em prol de toda a
Humanidade.
Utopia? Depende de cada um de
nós…
Sara RODI