No início do Ano Letivo
Pedro Rosário, Professor do Departamento de Psicologia da Universidade do Minho e uma
vasta experiência em projetos de investigação no
país e no estrangeiro, escreveu este texto sobre o início do ano letivo:
Reza um ditado popular atribuído ao imaginário japonês que
um sapo preso num poço não conhece o mar.
A estória que dá origem a este sábio dito conta que um sapo
vivia regalado num poço não muito profundo. A borda generosa, revestida de
tijolo burro, permitia-lhe umas sestas retemperadoras do esforço consumido em
mergulhos e saltos entre nenúfares. Avida deste sapinho era tranquila e sem
grandes inquietudes. O conhecido era limitado, mas seguro. O que faltava em
ambição sobrava em conforto. O sapo vivia contente no seu poço e espalhava aos
ventos os benefícios de um viver controlado e previsível.
Um dia solarengo conduziu uma tartaruga à orla do poço.
‘Olá, tartaruga. Conheces o meu poço?’ Antecipando uma resposta negativa, o
sapo terá iniciado uma verborreia convincente sobre o seu poço e as maravilhas
da sua vida. ‘Não conheces o meu poço?’ Não vives num poço? Então onde vives,
tartaruga? Como podes ser feliz?’ Com calma e paz milenares, a tartaruga
disse-lhe que vinha do mar. Respondeu ao esgar de espanto, explicando-lhe que o
mar era pintado por tons azuis, verdes, ou mesmo cinzentos de acordo com o
pincel da luminosidade. Era profundo e albergava animais diversos em tamanho,
cor e voracidade. O mar podia ser implacável mostrando a sua fúria contra
pobres rochas que descarnavam sem se queixar, ou tão tranquilo que poderia
servir de mesa de trabalho. O sapo escutou a encantada descrição da tartaruga e
terá concluído. ‘Eu não conheço o mar’. Sim, o sapo preso num poço não conhece
o mar.
Todos somos sapos de algum modo e todos temos poços aos
quais nos agarramos desesperadamente, pois são conhecido. O mar pode ser uma
ameaça ou um desafio, depende das lentes que usemos. Estamos no início de mais
um ano letivo, e para todos há um mar que nos chama ululando, um mar que nos
desafia a sair do nosso pocinho e a abraçar desafios.
A estória sabiamente não conta a resposta da tartaruga à
inconfidência do sapo: não conheço o mar. Dispostos a terminar a estória, as
possibilidades de narrativas são diversas. ‘A tartaruga queria levar o sapo a
conhecer o mar’, se sim, como o faria?
Gostaríamos que os nossos filhos/educandos/amigos… começassem
a, deixassem de, trabalhassem mais em, respondessem com modos que não os de um
triturador de peças metálicas, enfim, habitualmente a lista de desejos
educativos é interminável. A tentação de conduzir os demais ao nosso mar é
grande. Afinal o mar é incomparavelmente melhor do que o pocinho.
Sim, mas é neste ponto que a prudência aconselha a escutar o
sábio aviso de Kurt Lewin: não há nada mais prático que uma boa teoria. A
motivação descreve o nosso envolvimento com as tarefas, energiza o nosso comportamento
na direção dos nossos objetivos. A motivação é sempre um movimento
idiossincrático, a motivação é sempre pessoal. Esta afirmação apresenta uma
roupagem simples, até algo ingénua, admito. Mas as implicações da formulação
são tão importantes e vastas para o processo educativo, e para a vida de todos,
que não seria possível abordá-las todas nesta breve janela. De todos os modos a
primeira, e a mais substantiva, sugere-nos que não podemos motivar ninguém. A
motivação é um estado interior, suscetível a influências e interferências do
exterior; mas sempre, e definitivamente, um estado interior. Recolhemos
informações, pistas, sugestões, que nos chegam de mãos amigas, mãos calejadas,
mãos interessadas, mãos audazes ou mãos temerosas, mas a decisão de (não)
realizar a tarefa é nossa, assim como a da dose de esforço alocada. A tartaruga
não podia motivar o sapo a conhecer o mar.
Então que papel nos resta como educadores? A contemplação
resignada, a impotência irresponsável perante comportamentos e vidas que se
adentram em poços ensimesmados? Se não podemos motivar, então o que podemos
fazer com os nossos filhos ou educandos? Não estou nada de acordo.
Não podemos motivar, mas podemos inspirar. Eufemismos! Serão
todas estas dúvidas e oposição emocionada resultado da resistência do nosso
pocinho a avançar para o mar? Será que nos acontece sermos vítimas do que
propomos tão eloquentemente para os demais?
É impossível motivar os demais, porque a motivação descreve
o compromisso com as tarefas e qualquer compromisso é sempre pessoal. A
tartaruga poderia encantar o sapo com a importância do mar e com a
multiplicidade de aspetos positivos que encheriam a sua vida se os conhecesse
(e.g., carreira, saúde, bem-estar, oportunidades, família). Mas por mais
interessante e entusiasmante que o mar fosse, é ao sapo que compete avançar.
Nem todos os argumentos do mundo me convencem a avançar, quando acredito que
não consigo, quando não tenho hábitos de trabalho que sustenham o meu agir,
quando os conhecimentos-chão que sustentam aquelas aprendizagens são frágeis,
quando a minha vontade é sósia da gelatina, derretendo-se à menor
contrariedade, quando não vejo porquê, nem vejo para quê.
É nesta tarefa, que os educadores são convocados. O processo
educativo encontra pontes entre significados, o do educando e o do educador.
Quando o educando coloca pontos finais (e.g., não consigo fazer, não sei nada,
não tenho competência para) o educador oferece uma vírgula mobilizadora (e.g.,
ainda não consegues, mas se começares por, não dominas esses conhecimentos, mas
se estudares isto e realizares estes exercícios talvez, ainda não tens essas
competências, vamos continuar a treinar para robustecer a prática de). O
processo educativo não convive com pontos finais; mobilizar rima sempre com
virgular.
Os educadores são convidados a apresentar mares aos seus
educandos, e a facilitar que os educandos aceitem o desafio. Os educandos têm a
responsabilidade de agir. Sim, mas porque é que uns conseguem e avançam para o
mar, enquanto outros se entrincheiram cada vez mais nos seus pocinhos?
As razões são múltiplas, e a discussão ultrapassa este
breve espaço. Não obstante, analisaremos brevemente uma explicação poderosa: a
competência percebida. Tipicamente escolhemos realizar as tarefas nas quais
sentimos mais competência e apetência; se possível evitamos as tarefas nas
quais podemos falhar, experienciado fracasso. O motor da motivação é o sucesso
e o fracasso, o seu travão. Quando experienciamos sucesso, a energia da vitória
empurra novas tentativas que, desejavelmente, conduzem a mais sucessos. O
contrário também é verdade. A sabedoria do processo motivacional está em
despertar o querer na direção do dever. Quando alinhamos competência e
apetência, avançamos na espiral positiva de mais conhecimento, mais
investimento, mais rendimento, mais bem-estar, melhor serviço.
in Ponto SJ