o que vale a literatura
Sara Rodi, escritora de romances históricos e licenciada em Comunicação Social, deu a sua opinião sobre a importância vital da literatura:
Quando, há uns meses, o meu filho mais velho me pediu que lhe
indicasse um livro para ler, sugeri-lhe “O Ensaio sobre a Cegueira”, de José
Saramago. Ler um Prémio Nobel pareceu-lhe um desafio interessante, e não se
deixou intimidar pela ausência de alguma pontuação ou diálogos separados por
parágrafos e travessões. A minha proposta de leitura, no entanto, nada teve que
ver com o reconhecimento da Academia Sueca (justíssima, em minha opinião),
muito menos com o estilo do autor ou a análise formal do texto. O meu objetivo,
quando lhe depositei o livro nas mãos, foi o de poder conversar com ele sobre
aquilo de que o ser humano é capaz em situações-limite, ou como a “cegueira”
pode ser uma “praga”. O livro é distópico, é certo, mas há questões que nos
obrigam a refletir sobre o presente: e se fosse connosco, aqui e agora? Como
reagiríamos? Estaremos nós assim tão longe de passar por uma situação que nos
obrigue a testar os nossos instintos? A pôr em causa os nossos valores?
Não sou uma mãe alarmista, mas também sei que não posso fechar os
meus filhos numa bolha, e que, em casos limite, poderei não ter a força de
Guido (Roberto Begnini), em “A Vida é Bela”, para convencer um filho de que a
maior barbárie não passa de uma brincadeira… As televisões mostram-nos
diariamente como o dia-a-dia de tantos milhões de pessoas, um pouco por todo o
mundo, é feito de medo, revolta, intolerância, violência e morte, a que, num mundo
global, ninguém pode ficar indiferente. O medo faz extremar posições, mas o
medo de vir a ter medo também, e voltam a surgir em cena líderes e forças
políticas que prometem a paz e a prosperidade, exigindo-nos em troca a nossa
liberdade, mas também a nossa própria humanidade e os valores que lhe subjazem.
Para onde caminhamos, afinal? Como chegámos até aqui? Que desafios, antes
inimagináveis por pais como eu, terão de enfrentar os nossos filhos, no futuro?
Como ajudá-los? Como ensinar-lhes a lidar com eles, sem porem em causa todos os
valores que procuramos transmitir-lhes, no nosso dia-a-dia?
Nos livros que recomendo aos meus filhos, ou que leio com eles
antes de irmos para a cama, vamos procurando pistas para lidar com o mundo que
nos rodeia. Ora falamos de emoções, ora de medos e reações. Somos convocados a
tentar entender as personagens e a forma como elas se movem, mas também a
pensarmos como seríamos nós na pele delas, neste ou naquele cenário. Entendemos
a História e os percursos, assim como os padrões que se mantêm e tendem a
repetir-se no tempo, à custa de feridas mal curadas ou do rancor que ficou no
lugar da aprendizagem. Os livros ensinam-nos que uma mesma história pode ganhar
outros nomes e formas, mas não deixa de conter nela os mitos fundadores e os
arquétipos que estão em nós, mesmo que nas nossas profundezas mais recônditas,
à espera do momento certo (ou errado) para acordarem. E que, por isso mesmo, é
tão preciso estarmos alerta, com consciência de que nunca é assim tão difícil
tornarmo-nos na pior versão de nós mesmos, se as condições o propiciarem.
Mas os livros ensinam-nos também que o caminho é feito de
escolhas, e que todas elas, como labirintos, conduzem a determinados desfechos.
Nos livros, como na vida, há encruzilhadas e mudanças abruptas. Há outras
personagens que podem influenciar as nossas escolhas e mudar os nossos
desfechos. Porque os livros nos ensinam a perceber também a força das nossas
ações e a força das nossas palavras, pelo que não há como não escolhê-las
cuidadosamente, para sossegar ou agitar, para manter o que é bom ou ajudar a
transformar o que já não nos serve ou não serve aos outros. E que há palavras
que devem ser poderosos alertas para o que pode vir a acontecer. São
inaceitáveis. Como há outras que exigem debate, mas com regras muito claras,
sem se cair no erro de rebaixar as palavras do outro, ou até mesmo rebaixar o
outro com palavras. A liberdade do discurso é exigente e implica, no mínimo dos
mínimos, que termine onde começa a liberdade do outro. Por último, que há
também palavras que precisam de ser inventadas, porque os livros permitem-nos
acreditar igualmente na força da criatividade como resposta para os piores
males e pesadelos.
Recorro às histórias – às que leio e às que escrevo – porque não
sei se sei tentar mudar o mundo de outra forma. Pergunto-me, sem certezas, o
que ficará nos meus filhos, depois de tantas histórias lidas e exploradas. Que
história será a deles. E que histórias ajudarão eles a construir, com palavras
e atos, e se isso transformará este mundo num lugar melhor. A única certeza que
tenho é que se aproximam episódios desafiantes, e que nenhum esforço para
tentar impedi-los, enfrentá-los ou resolvê-los, nossos ou dos nossos filhos,
será em vão…
Acredito, por isso, que é tempo de os pais (e, com eles, toda a
família), através de histórias ou de quaisquer outras formas que façam sentido
nas suas vidas, reforçarem nos filhos os valores fundamentais que não podem
faltar-lhes, perante os desafios. O autoconhecimento necessário para saberem o que
têm para dar e o que, em cada um, interiormente, devem contrariar. O sentido
crítico necessário para não se deixarem enganar. E a criatividade para
procurarem novas soluções com mais sentido.
E, porque os pais não podem nem sabem tudo, e às vezes não existem
mesmo famílias para o fazerem, é preciso que a escola consiga fazê-lo também.
Que use a História para verdadeiramente entender a História e não deixar que
ela se repita, naquilo que é inconcebível. Que a Filosofia não ensine só o que
pensou cada filósofo, mas ajude verdadeiramente a pensar e a repensar o mundo.
Que a Matemática contribua também para a descoberta de padrões nas ações do ser
humano. E a Ciência e a Física explore os limites do que não podemos
ultrapassar, sob risco de quebrar todas as leis que nos permitem sobreviver.
Que a Geografia nos obrigue a olhar para um mundo global, que não podemos
apenas mapear sem sermos solidário com quem lá vive. E que o Português, e as
línguas em geral, nos ajudem a perceber a força dos atos e das palavras, e a
força de cada um de nós, personagem, para transformar não só a nossa história
pessoal, como também a história global…
Não conheço forma mais eficaz e duradoura para
nos curar da “cegueira”, do que a Educação. Dá trabalho – ou, como escreveu
Saramago, “o que queria era fingir outra preocupação, o que queria era não ter
que abrir os olhos” -, mas há-de valer a pena…
in Ponto sj